segunda-feira, 15 de agosto de 2011

APRENDIZAGEM


A noção de aprendizagem está, em sua origem, associada a idéia de apreensão de conhecimento e, nesse sentido, só pode ser compreendida em função de determinada concepção de conhecimento – algo que a filosofia compreende como base ou matriz epistemológica. A partir de tais concepções, podem ser focalizadas três possibilidades de definição de aprendizagem:
“Aprendizagem é mudança de comportamento resultante do treino ou da experiência”
Esta seria a definição mais impregnada e dominante no campo psicológico e pedagógico e, certamente, a mais resistente às proposições alternativas. Funda-se na concepção empirista formulada por Locke e Hume. Realimenta-se do positivismo de Comte, com seus ideais de objetividade científica, ao final do século XIX e se encarna como corrente behaviorista, comportamentista ou de estímulo–resposta, no início do século XX. Valoriza o pólo do objeto e não o do sujeito, marcando a influência do meio ou do ambiente através de estímulos, sensações e associações. Reserva ao sujeito o papel de receptáculo e reprodutor de informações, através de modelagens comportamentais progressivamente reforçadas e dele expropria funções mais elaboradas que tenham relação com motivações e significações. Neste modelo, aprendizagem e ensino têm o mesmo estatuto ou identidade, pois a primeira é considerada decorrência linear do segundo (em outros termos: se algo foi ensinado, dentro de contingências ambientais adequadas, certamente foi apreendido...). Na perspectiva pedagógica, essa concepção encontra plena afinidade com práticas mecanicistas, tecnicistas e bancárias – metáfora utilizada por Paulo Freire, para traduzir a idéia de passividade do sujeito, depositário de informações, conforme a lógica do acúmulo, a serviço da seleção e da classificação.
“Aprendizagem é apreensão de configurações perceptuais através de insights”
Esta seria a concepção que se opõe à anterior, polarizando em torno das condições do sujeito e não mais do objeto ou meio. Funda-se em uma base filosófica de natureza racionalista ou apriorista, que percebe o conhecimento como resultante de estruturas pré-formadas, de variáveis biológicas ou maturacionais e de organização perceptual de situações imediatas. A escola psicológica alemã conhecida como Gestalt, responsável no início do século XX, por estudos na vertente da percepção, constitui umas das expressões mais fortes dessa posição, tendo deixado um legado mais associado ao estudo da “boa forma” ou das condições capazes de propiciar soluções de problemas por discernimento súbito (insight), em função de relações estabelecidas na totalidade da situação. Neste modelo, a aprendizagem prevalece sobre o ensino, em seu estatuto de auto-suficiência e auto-regulação, reducionismo que permanece recusando a relação ensino-aprendizagem e se fixando em apenas um de seus pólos.
“Aprendizagem é organização de conhecimentos como estruturas, ou rede construídas a partir das interações entre sujeito e meio de conhecimento ou práticas sociais”
Esta seria uma concepção de base construtivista ou interacionista, comprometida com a superação dos reducionismos anteriores (experiência advinda dos objetos X pré-formação de estruturas) e identificada com modelos mais abertos, fundados nas idéias de gênese ou processo.
Por esta razão, suas principais vertentes podem ser identificadas como “psicogenéticas” e são representadas pela Epistemologia Genética Piagetiana e pela abordagem sócio-histórica dos psicólogos soviéticos (Vygotsky, Luria e Leontierv, em especial).
Dois destaques merecem ser feitos em relação a essas duas vertentes:
1- Na perspectiva piagetiana, aprendizagem se identifica com adaptação ou equilibração à medida que supõe a “passagem de um estado de menor conhecimento a um estado de conhecimento mais avançado” ou “uma construção sucessiva com elaborações constantes de estruturas novas, rumo a equilibrações majorantes” (PIAGET, 1993). O motor para tais processos de adaptação e equilibração seria o conflito cognitivo diante de novos desafios ou necessidades de aprendizagem, em esforços complementares de assimilação (pólo do sujeito responsável por incorporações de elementos do mundo exterior) e acomodação (pólo modificado do estado anterior do sujeito em função das atuais demandas apresentadas pelo objeto de conhecimento). Essa posição sugere a importância de que o meio de aprendizagem seja alargado e pleno de significado, para que se chegue a uma congruência entre a parte do sujeito e as pressões externas, entre auto-regulações e regulações externas, entre sistemas pertinentes ao aluno e ao professor. Assim, a não-aprendizagem seria resultante da ausência de congruência entre os sistemas envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem.
2- Na perspectiva sócio-histórica de Vygotsky e seus colaboradores, destaca-se, no contexto dessa discussão, a articulação fortemente estabelecida entre aprendizagem e desenvolvimento, sendo a primeira motor do segundo, no sentido que apresenta potência para projeta-lo até patamares mais avançados. Esta potência da aprendizagem se ancora nas relações entre ”zona de desenvolvimento real” e “zona de desenvolvimento proximal”: a primeira referindo-se às competências ou domínios já instalados (no campo conceitual, procedimental ou atitudional, por exemplo) e a segunda entendida como campo aberto de possibilidades, em transição ou em vias de se consolidar, a partir de intervenções ou mediações de outros – professores ou pares mais experientes ou competentes em determinada área, tarefa ou função (VYGOTSKY, 1984). Nesse sentido, este teórico redimensiona a relação ensino-aprendizagem, superando as dicotomias e fragmentação de outras concepções e valoriza o aprendizado escolar como meio privilegiado para as mediações em direito a patamares conceituais mais elevados.
Além disso, a perspectiva dialética dessa abordagem insere a aprendizagem em uma dimensão mais próxima de nossa realidade educacional: um processo marcado por contradições, conflitos, rupturas e, até mesmo, regressões – necessitando, por isso mesmo, de mediações que assegurem o espaço do reconhecimento das práticas sociais dos alunos, de seus conhecimentos prévios, dos significados e sentidos pertinentes às situações de aprendizagem de cada sujeito singular e de suas dimensões compartilhadas.
As abordagens contemporâneas da Psicologia da Aprendizagem e dos estudos sobre reorientações curriculares apóiam-se nessas categorias para a necessária reorientação das estratégias de aprendizagem. Autores do grupo da Espanha, que vêm oferecendo fundamentos à atual proposição de nossos parâmetros curriculares (Coll, Palácios, Pozo, Sole, dentre outros), insistem, por exemplo, na importância de se reconhecer duas culturas ou tradições no estudo da aprendizagem, com implicações diretas para as estratégias utilizadas no ato de aprender (COLL, et al., 1996; SOLÉ, 1998).
Um enfoque superficial: centrado em estratégias mnemômicas ou de memorização (reprodutoras em contingências de provas ou exames) ou centrado em passividade, isolamento, ausência de reflexão sobre propósitos ou estratégias; maior foco na fragmentação e no acúmulo de elementos;
Um enfoque profundo: centrado na intenção de compreender, na relação das novas idéias e conceitos com o conhecimento anterior, na relação dos conceitos como experiência cotidiana, nos componentes significativos dos conteúdos, nas inter-relações e nas condições de transcendência em relação às situações e aprendizagens do momento.
As questões mais relevantes, a partir dessas distinções seriam: Por que um aluno se dirige para um outro tipo de aprendizagem? O que faz com que mostre maior ou menor disposição para a realização de aprendizagens significativas? Por que não aprende em determinadas circunstâncias? Por que alunos modificam seu enfoque em função da tarefa ou da mudança de estratégias dos professores? Quais os fatores de mediação capazes de produzir novos patamares motivacionais e novas zonas de aprendizagem e competência?
Tais questões sinalizam para um projeto educativo comprometido com novas práticas e relações pedagógicas, uma lógica a serviço das aprendizagens e da Avaliação Formativa, uma concepção construtiva e propositiva sobre erros e correção dos mesmos, uma articulação entre dimensões cognitivas e sócio-afetivas que ressignifiquem o ato de aprender. Revisitar alguns desses verbetes, ao longo dessa produção, poderá ser um convite à reflexão.

PARA SABER MAIS...

PIAGET, Jean. A Epistemologia Genética: Problemas de Psicologia Genética. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (col. Os Pensadores)
Obra fundamental na consolidação dos pressupostos psicogenéticos, a partir da década de 50, na qual são revistas e confrontadas as bases epistemológicas das concepções de aprendizagem, com ênfase nos pressupostos do “construtivismo dialético” defendido pelo autor. Há uma detalhada análise dos níveis da psicogênese dos esquemas e estruturas da criança e do adolescente.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
Coletânea dos principais ensaios produzidos por Vygotsky, que consolida, em uma primeira parte, estudos sobre a “teoria básica e dados experimentais”. Na segunda parte, há um estudo clássico sobre a interação entre os processos de aprendizagem e desenvolvimento, fundamentando a concepção de Zona de Desenvolvimento Proximal, central na abordagem. Este artigo é reproduzido ainda em:
VYGOTSKY, L. S.; LURIA A; LEONTIEV, A. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Edusp/Ícone, 1998.
Apresenta a discussão teórica dos três autores envolvendo a linguagem, o desenvolvimento e a aprendizagem.
COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A. Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia da Educação. Vol. 2. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
Ampla revisão de concepções acerca dos processos de aprendizagem e ensino, com ênfase em fatores, estratégias, práticas educativas e intervenções de professores. A diversidade de contribuições se reveste de maior interesse pela sintonia dos autores com o atual movimento brasileiro de reorientação de nossos parâmetros curriculares.
GIUSTA, Agnela. da Silva. Concepções de aprendizagem e práticas pedagógicas. Educação em Revista. Belo Horizonte, Faculdade de Educação/UFMG. n. 1, p. 25-31, jul. 1985.
Este artigo oferece uma análise condensada e crítica das matrizes epistemológicas que coexistem no campo educacional e de suas manifestações nas teorias psicológicas subjacentes a práticas pedagógicas diversas.
SOLÉ, Isabel. Disponibilidade para a aprendizagem e sentido da aprendizagem. In: COLL, C. et al. (org.) O Construtivismo na sala de aula. São Paulo: Ática, 1998.
É uma análise sensível de variáveis relevantes ao processo de aprendizagem, como motivação, autoconceito, representações, expectativas, atribuições de papéis. Amplia a discussão em torno das dimensões de significado e sentido, fundadas na abordagem sócio-cultural e das articulações entre o âmbito afetivo relacional e o cognitivo na aprendizagem.


DISPONIVEL EM - http://crv.educacao.mg.gov.br

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